Lazer divino.


    Como de costume, a Sra. Kami não dormira aquela noite. Realmente sentia muita falta do marido, falecido há três anos, razão de se sua depressão.
    Alguns andares abaixo, o Sr. Harbor tomava seu café, tranquilamente, pensando o quão verídica era a lei de Murphy. Resolveu testar. Dos cinco biscoitos, um caiu com o lado da geleia para cima, dois para baixo e outros dois bateram em seu pé antes de tocarem o chão, o que invalidou a experiência.
    Kami tomava seu segundo diazepam matinal, empurrado por um copo de leite morno (ela preferia assim), mas ainda sem efeito.
    Harbor lamentou ter desperdiçado os biscoitos. Não havia mais pacotes na despensa. Teria de sair para comprar mais; aproveitaria para fazer as compras.
    Do 12º andar, para Kami, tudo parecia tão insignificante e pequeno quanto sua vida miserável. Tentou ler um livro.
    “Pegar as chaves, os documentos e o dinheiro. Por que não deixo as chaves sempre no mesmo lugar?” – pensava Harbor. Focou-se em encontrar as chaves. Acendeu um Gudan, pra ajudar na memória – “Quanto mais relaxado, mais fácil de lembrar!”.
    Kami tentava a quinta ligação do dia para sua psicóloga – “A maldita desligou o celular! Para que pago essa vaca?” – Ligou a TV, desligou a TV, foi pegar um ar fresco na varanda. Curtia sua visão de insignificância.
    Já dentro do carro, na rua, o Sr. Harbor conferia os bolsos – “Droga! Esqueci o isqueiro…”. Estacionou o carro e resvalou no meio fio.
    Kami contemplava a vista com olhar vago.
    Aproximando-se do portão do prédio, o Sr. Harbor diminuiu os passos enquanto ria de seu pensamento – “É o vício que me mata! Hahaha!”
    Agora, Kami vislumbrava a paisagem em alta velocidade…

Reportagem:

Um trágico caso de suicídio ocorrido na última segunda-feira (22) ganhou repercussão nesta quarta-feira (24) em Bruxelas, na Bélgica.
Uma mulher que se jogou de seu apartamento no 12º andar de um prédio da capital acabou matando um pedestre que estava na rua abaixo, informou a polícia.
A mulher, de 67 anos, saltou da sacada e atingiu um homem de 72 anos que estava entrando no prédio. Ambos sofreram ferimentos graves e acabaram morrendo.
Segundo a mídia local, a suicida sofria de depressão há três anos, desde a morte de seu marido.
 Notas:
- Apenas a reportagem é um fato verídico.
- Os nomes Kami (Kamikaze) e Harbor (Pearl Harbor) são uma referência ao ocorrido na base militar de Pearl Harbor, durante a Segunda Guerra Mundial.

Comentário do autor: Adoro o senso de humor dos deuses.
O fato real é apenas a reportagem, que está na caixa em destaque, o resto é romance.
Achei interessante a infeliz coincidência que ocorreu nesse caso e, ao invés de utilizá-lo para fazer críticas e mais críticas diretas à fé, preferi colocá-la de forma que fosse possível a percepção e conclusão da mensagem implícita, que é o que os religiosos mais valorizam, em lugar à objetividade. Me sinto explicando uma piada mal contada, ou uma arte abstrata

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